O artigo do JAMA que esconde a horrível abstinência causada por antidepressivos

Novo "estudo" publicado no prestigiado JAMA e conduzido por pesquisadores ligados à indústria farmacêutica procura esconder os horríveis efeitos de abstinência induzidos pelo uso de antidepressivos
Foto: Daniel Mello/Agência Brasil

Há décadas é sistematicamente negado que o uso de antidepressivos possa causar abstinência. Se você perguntar a um psiquiatra ou outro médico, muito provavelmente vai ouvir uma resposta de que a interrupção do uso de um antidepressivo pode causar um leve desconforto, que, no máximo, durará algumas semanas. Algo como dor de cabeça, tontura, um tipo de gripe.

Isso acontece porque os dados a este respeito sempre foram coletados a partir de estudos ligados à própria indústria farmacêutica, onde as pessoas recebiam quase sempre os remédios por 6 a 8 semanas e em seguida seu uso era interrompido. Daí se extraíam os dados para aferir se as pessoas tinham sintomas de abstinência ou não.

A fraude é escancarada. Mesmo um usuário de cocaína pode não apresentar sintomas de abstinência em período tão curto. E qualquer um que tenha pisado em um consultório psiquiátrico sabe que jamais os remédios são prescritos por tempo tão curto. Para se ter uma ideia, as diretrizes da Associação Médica Brasileira para o tratamento da depressão (que por sua vez foram baseadas em documentos da Associação Inglesa de Psicofarmacologia, Associação Americana de Psiquiatria, Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos – Depression Guideline Panel – e o Comitê de Prevenção e Tratamento de Depressão da Associação Mundial de Psiquiatria) afirmam que o tratamento com antidepressivos envolve a “fase aguda” – que corresponderia aos dois ou três primeiros meses de tratamento -, a “fase de continuação” – que corresponderia ao quarto a sexto mês de tratamento -, e a “fase de manutenção”, que seria a manutenção a longo prazo 1. Ou seja, mesmo a “fase aguda” extrapola o período normalmente analisado nos estudos clínicos.

Apenas na Inglaterra, 2 milhões de pessoas tomam antidepressivos há mais de cinco anos. No Brasil não contamos com estatísticas deste tipo, mas certamente não é exagero estimar a casa de milhões de pessoas que tomam antidepressivos há anos ou mesmo décadas.

Muitas destas pessoas, enfrentando a negligência de seus médicos quando relatavam sentir efeitos de abstinência ou de uso prolongado, passaram a se organizar em grupos de apoio mútuo, principalmente em fóruns online, que de fato foram os primeiros lugares onde se desenvolveram protocolos de retirada de medicamentos psiquiátricos que buscassem minimizar os efeitos e abstinência. O fórum surviving antidepressants, que nesse momento conta com 23.072 membros, é um dos mais conhecidos. Já o grupo Cymbalta hurts worse (em referência ao nome comercial da duloxetina) reúne 43,6 mil membros.

É emblemático que o psiquiatra Mark Horowitz, hoje conhecido por seu trabalho com a retirada de medicamentos psiquátricos, tendo sido um dos autores do guia de desprescrição dos medicamentos Maudsley deprescribing guidelines, afirme que quando ele iniciou sua terrível jornada de retirada do Lexapro (escitalopram), mesmo com seis certificados acadêmicos e um doutorado a respeito das drogas psiquiátricas, ele tenha sido orientado por meio desses fóruns online – e foi a partir dessa experiência que se tornou um dos pioneiros nas pesquisas e protocolos da chamada retirada hiperbólica dos medicamentos. Isso porque, como disse, no meio acadêmico e médico existia um imenso volume de conhecimento sobre como introduzir os medicamentos, e nenhum sobre como retirá-los.

O fato é que décadas de organização das pessoas que foram feridas e prejudicadas pelos tratamentos, geraram não apenas fóruns mas outros órgãos, dentre o qual se destaca o Inner Compass, fundado por Laura Delano, ou o recente Antidepressant Coalition for Education – que atualmente organiza relatos de pessoas que sofreram abstinência para pressionar o FDA (agência reguladora dos EUA) a incluir tarjas de aviso sobre os riscos nas caixas dos medicamentos. Estas vozes se fizeram ouvir, e estão cada vez mais repercutindo as verdades que a indústria farmacêutica cautelosamente ocultou por décadas.

Em abril, um importante estudo conduzido por Horowitz ouviu 310 pacientes do NHS (um tipo de SUS britânico) sobre os sintomas que experimentaram de abstinência 2. Aqui, não era mais um desses estudos farsescos, mas uma situação de vida real com pessoas que passaram anos tomando os medicamentos. O resultado é que 79,3% (222 pessoas) relataram ter sofrido algum tipo de abstinência, sendo 30,4% com efeitos moderados e 14,6% severos. 42,6% se enquadravam em uma síndrome de abstinência, o que significa ter quatro ou mais sintomas não emocionais. Entre os sintomais não emocionais relatados por 50% ou mais dos participantes estavam dores de cabeça, despersonalização/desrealização 3 e tontura ou sensação de desmaio (light-headedness).

Também se demonstrou que a abstinência dificultava ou mesmo impedia as pessoas de interromper o uso da medicação, pois 37,9% relataram não terem conseguido interromper o uso graças aos seus efeitos. Dentre os participantes que relataram que parar os antidepressivos era difícil se encontravam 37,4% e 15,3% afirmaram ser muito difícil. Foram 43,3% os que tentaram parar mais de uma vez e 7,7% tentaram mais de quatro vezes.

A duração da abstinência, que também é sempre subestimada nos dados “oficiais” vindos dos estudos de curta duração, também relevou sua verdadeira face: se a maioria (58,5%) teve sintomas que duraram menos de quatro semanas, 19,7% declarou ter sintomas que duraram mais de três meses, enquanto 9,5% afirmaram ter tido sintomas que duraram mais de um ano.

Este estudo, somado a outros que vem despontando por meio de pesquisadores independentes e comprometidos com a verdade, estão finalmente mostrando a verdadeira face dos antidepressivos em relação à abstinência, deixando claro que são medicamentos perigosos e com riscos severos. Há também os casos da chamada abstinência prolongada (protracted withdrawal), que podem ocorrer apenas meses após a interrupção do uso mas que se prolongam por anos, podendo passar de cinco, e são de forma unânime descritas pelos que a enfrentaram como a pior experiência de suas vidas.

A resposta

Assim, não parece coincidência que no dia 9 de julho o JAMA (Journal of the American Medical Association) tenha publicado uma verdadeira peça de propaganda a serviço da indústria farmacêutica, um artigo produzido por pesquisadores cujos conflitos de interesses são inúmeros, sendo fartamente financiados por aqueles que tem necessidade de manter viva a lenda de que os antidepressivos não causam abstinência.

O artigo é expressivamente intitulado “Incidência e natureza dos sintomas de descontinuação dos antidepressivos”. 4 Faz parte da política dos asseclas da indústria farmacêutica evitar o termo “abstinência” como o diabo foge da cruz, utilizando sempre o eufemismo “sintomas de descontinuação”.

O estudo incluiu uma meta-análise de 49 e uma revisão sistemática inédita de outros 11 estudos. Destes, 10 empregavam os antidepressivos no período entre 8 e 12 semanas, e um durante 26 semanas. Compare esse período com aquele indicado pelas associações médicas para o uso dos antidepressivos. Compare com o período que você ou as pessoas que conhece utilizam ou utilizaram o antidepressivo. A fraude é escancarada.

Isso garantiu aos autores a sua conclusão de que “o número de sintomas de descontinuação uma semana após a interrupção do uso de antidepressivos está abaixo do limite para síndrome de descontinuação clinicamente significativa.”

Os autores do estudo afirmarm que os sintomas de “descontinuação” são leves, transitórios e clinicamente desimportantes. Note-se também que o período de acompanhamento após a interrupção do uso era ínfimo, incapaz de detectar possíveis abstinências tardias e prolongadas – as mais graves, via de regra. A maior parte das pessoas apenas começa a sentir os efeitos de abstinência após um período de duas semanas.

comunicado de imprensa da Antidepressant Coalition for Education aponta diversos problemas, tais como sintetizados abaixo.

Além disso, o instrumento usado para aferir os sintomas, denominado DESS (Discontinuation-Emergent Signs and Symptoms) é incapaz de diferenciar as chamadas recaídas e os sintomas da abstinência, um equívoco que é extremamente comum também na clínica e leva muitas pessoas a serem equivocadamente instruídas a manterem o uso dos remédios para evitar “recaídas” que na verdade são sintomas de abstinência.

Em alguns estudos, efeitos graves mas pouco comuns foram descartados, como afirma o artigo: “Alguns ECR (Estudos Clínicos Randomizados) apenas relataram EA (efeitos adversos) que ocorreram em mais de 10% da amostra. Conseguentemente, alguns dos efeitos de descontinuação mais graves mas menos comuns não teriam sido relatados.”

Isso significa descartar sintomas graves como acatisia, suicidalidade, instabilidade emocional, entre outros relatados pelos usuários.

Uma das mais perigosas constatações do estudo é sua inconsequente dismissiva em relação à necessidade de protocolos de retirada gradual dos medicamentos: “Nossos achados … jogam um grau de dúvida em relação à necessidade de regimes rotineiros de retirada a longo prazo apartados de quaisquer preocupações teóricas.”

Como afirma a Antidepressant Coalition, “Apesar dessa afirmação, a revisão não inclui nenhum estudo investigando métodos de redução gradual em situações do mundo real. Ela questiona a redução gradual sem oferecer dados relevantes.”

Além disso, o estudo afirma que sintomas relacionados ao humor foram atribuídos a recaídas, e não à abstinência, o que é um fator confudidor dos resultados de grande relevância.

O grau de promiscuidade tanto dos pesquisadores quanto dos estudos utilizados com a indústria farmacêutica é gritante: seus autores possuem ligações financeiras com mais de 20 empresas farmacêuticas, e os estudos analisados, conforme eles mesmos afirmam, “utilizam dados de companhias farmacêuticas como Lundbeck, Takeda, Lilly, e Pfizer.”

Como afirmou Cooper Davis, diretor da Inner Compass, uma instituição sem fins lucrativos que fornece apoio a indivíduos em abstinência de drogas psiquiátricas,

“O artigo faz o que essas revisões frequentemente fazem — confunde ausência de evidência com evidência de ausência. A retirada de longo prazo e severa é real, e simplesmente não está capturada no conjunto de dados que eles escolheram usar. Isso é uma narrativa controlada.”

É necessário continuar nadando contra a maré para combater as mentiras e desinformações propagadas pelos financiamentos da indústria farmacêutica em defesa dos seus interesses. Quantos mais precisarão sofrer os terríveis efeitos da abstinência de drogas psiquiátricas para que eles sejam reconhecidos como reais?


1 – Diretrizes da Associação Médica Brasileira para o tratamento da depressão (versão integral)Artigo Especial • Braz. J. Psychiatry 25 (2) • Jun 2003 • https://doi.org/10.1590/S1516-44462003000200013

2 – Horowitz MA, Buckman JEJ, Saunders R, Aguirre E, Davies J, Moncrieff J. Antidepressants withdrawal effects and duration of use: a survey of patients enrolled in primary care psychotherapy services. Psychiatry Res. 2025 Aug;350:116497. doi: 10.1016/j.psychres.2025.116497. Epub 2025 Apr 18. PMID: 40404538.

3 – A despersonalização se refere à sensação de estar desconectado de si mesmo, como se estivesse observando suas próprias ações e pensamentos de fora do corpo. Já a desrealização é a sensação de que o mundo ao redor é irreal, distante ou distorcido.

4 – Kalfas, Michael & Tsapekos, Dimosthenis & Butler, Matt & McCutcheon, Robert & Pillinger, Toby & Strawbridge, Rebecca & Bhat, Bhagyashree & Haddad, Peter & Cowen, Philip & Howes, Oliver & Joyce, Dan & Nutt, David & Baldwin, David & Pariante, Carmine & Lewis, Gemma & Young, Allan & Lewis, Glyn & Hayes, Joseph & Jauhar, Sameer. (2025). Incidence and Nature of Antidepressant Discontinuation Symptoms: A Systematic Review and Meta-Analysis. JAMA Psychiatry. 10.1001/jamapsychiatry.2025.1362.


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Foto de Fernando Bustamante

Fernando Bustamante

É psicanalista. Escreve sobre saúde mental, psiquiatria e indústria farmacêutica no psique.substack.com

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